segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

ANSELMO DUARTE


Bom, para os que não sabem, o CCM tem um acervo com material doado pelo próprio Anselmo Duarte. Cartazes de filmes e fotos que são uma relíquia no mundo de hoje.

Considerado o eterno "galã" do cinema nacional, Anselmo Duarte também dirigiu filmes e ganhou fama como o diretor que não se dava com o pessoal do Cinema Novo. Como assim?


Em uma entrevista que achei de 2004, Anselmo Duarte explica isso e muitas outras histórias, provando que a Palma de Ouro de 1962 que ele ganhou com o filme "O pagador de promessas" não foi sem propóstio. Anselmo é bonito mesmo. E também inteligentíssimo, engraçado e dono de uma opinião forte.


Confiram.




Ninguém segura esse Russo Louco

Anselmo Duarte continua sendo nosso único Palma de Ouro
Entrevista concedida a Roberval Lima, Sandro Fortunato e Anahi de Castro

(2004)


SALTO (SP) - É mais fácil o cinema brasileiro desencantar e ganhar um Oscar do que tirar de Anselmo Duarte o título de único Palma de Ouro do Brasil. Isso já dura 42 anos. De 1962, quando O pagador de promessas ganhou o prêmio máximo do Festival de Cannes, até hoje, nenhum filme brasileiro repetiu o feito.


Enquanto, em Cannes, Diários de motocicleta, de Walter Salles, concorria à Palma de Ouro na 57ª edição do Festival, Anselmo dizia: “Estou correndo perigo de não ser mais o único Palme D’Or do Brasil”. Dono de uma voz vibrante e cheio de histórias, o diretor gravou um depoimento de mais de 3 horas para o site Memória Viva, em seu apartamento na cidade de Salto do Itu, São Paulo.


Aos 84 anos, Anselmo Duarte ainda mantém o jeitão dos anos 50 quando ganhou outro título, este dado por suas fãs e pela propaganda das empresas cinematográficas, o de “maior galã do cinema nacional”. Vaidoso, quando soube que haveria fotos, pediu para fazer a barba antes. No meio da entrevista, vendo a pequena câmera apontada insistentemente para ele, pergunta: “Você está fotografando ou filmando?” Ao saber que a câmera podia fazer as duas coisas, comenta com certo desprezo: “Aaaaaah... tem certas modernidades que eu não adoto.” Tudo bem, Anselmo, você pode.


Do tempo em que molhava a tela na qual se projetava o filme no Cine Pavilhão, em Salto, quando trocava impropérios com o público que estava do outro lado e ganhou o apelido de “Russo louco”, até a Palma de Ouro, passando pelos mal entendidos com o pessoal do Cinema Novo, Anselmo fala ainda do atual cinema brasileiro e conta histórias engraçadas sobre sua infância e sobre sua meteórica passagem por Hollywood.


Como começou sua ligação com o cinema ainda em Salto? Fale sobre o Cine Pavilhão.

É um caso único. Pouca gente sabe que se molhava a tela no cinema porque é bem diferente hoje. Mas eu estou me referindo ao cinema mudo. Aí dizem: “O Anselmo é mentiroso”. Quando não querem chamar de mentiroso, chamam de “criativo”. Mas é verdade. O pior é que as testemunhas já morreram. Eu sou o cara mais antigo daqui. Mas o Cine Pavilhão era assim. O projetor de filme ficava atrás da tela, que era um pano. Quando batia luz, passava para o outro lado. Assim era o cinema mudo. Pelo menos aqui em Salto. Antigamente era uma lente grande angular, na qual a imagem sai e já abre. Então ficava perto da tela, a uns 5, 6 metros, atrás. Era um só projetor e a cada dois rolos tinha um intervalo de dez minutos. Então tinha sempre dois garotos com uma seringa – feita num gomo de taquara com um courinho na ponta – que sugava e espirrava água. A gente ficava com aquele troço molhando a tela. Você viu O crime do Zé Bigorna? Não tem a cena lá, eles molhando a tela? Eu reproduzi essa cena, só que não eram dois meninos, eu botei o Lima Duarte e o Stênio Garcia.


E como era o público do Pavilhão?

Ah, tinha o diálogo com o público! Era um cinema poeira. Então todo mundo falava, gritava. Durante o filme, todo mundo conversava. Jogavam coisas na tela. E, nos intervalos, a gente jogava água na tela, para esfriar. Conforme a água batia na tela, ficava escuro. Aí o público, que estava do outro lado, fazia assim (colocando as mãos em concha na frente da boca): “Mais para o centro, seu burro!” E a gente jogando água. “Mais no meio, eu falei!” Ninguém me conhecia por Anselmo, ninguém me chamava assim porque achavam um nome meio “amanteigado” e eu era briguento. Eu era loiro e me chamavam de Russo Louco. Aí diziam assim: “Ô, Russo Louco, aqui embaixo, seu burro!” E eu: “É a puta que o pariu”. Porque a gente xingava também. E tinha outro amigo meu, o Zé Panela. Era aquele diálogo de xingação, era uma briga gozada através da tela. E quando estava terminada, eu dizia assim: “Agora vá todo mundo à puta que os pariu”. E o pessoal gritando: “É louco! É o Russo Louco!” Era uma pândega. As sessões eram concorridíssimas.


Já se falou muito sobre Cannes e O pagador de promessas. O que aconteceu depois disso?

Quem é laureado em Cannes não precisa entrar na seleção. É uma outorga que o Festival dá a todos os laureados. Um dos privilégios é esse. Cannes tem um regulamento: todo país pode concorrer com um filme mais os dos diretores laureados. O Brasil é o único país da América do Sul que pode concorrer com dois filmes. A única Palma de Ouro da América do Sul é do Brasil. Um será o que ele tem direito, que será selecionado aqui. O outro vai sem seleção (que é o do diretor laureado). Mas o filme, para sair, precisa de um visto do Itamaraty, que é um órgão que deveria saber de todas essas coisas, mas não sabe. Então eu mandei o filme e disse para enviar para Cannes, que eles (os organizadores do Festival) estavam esperando. Eles estavam selecionando filmes no Itamaraty e teve um crítico desses, lá no Rio, que barrou meu filme, o Vereda de salvação. Ele barrou, disse que não ia para Cannes. Um absurdo! Peguei um avião, fui para o Rio de Janeiro, cheguei lá e disse: “Eu mandei meu filme para os senhores remeterem para Cannes porque o Brasil tem o direito de remeter dois: o que vocês escolherem e o meu”. E eles: “É, mas o problema é outro. Não é que sejamos ignorantes. O problema é outro. Tem gente de pés descalços, gente do campo – que seriam os sem-terra –, o senhor é comunista. O senhor só não foi preso porque tem um nome...” Uma coisa absurda! Um negócio de louco! Aqui no Brasil, se você não é vencedor, “você é fantástico, é formidável, não tem chances, mas é ótimo”; mas se você ganhar... “não é tanto assim”. Brasileiro tem isso de não gostar de quem vence. Tem gente que diz que o Pelé não sabia jogar futebol! Disseram que o filme não iria por problema político, que eu era conhecido como comunista.


O senhor chegou a ser preso durante a ditadura, acusado de ser comunista?

Eu entrei (para o Partido Comunista) não por convicção política. Entrei por um abaixo-assinado que fizeram para inscrever (tornar legal) o partido. Eu tinha um grande amigo no Rio de Janeiro, que era comunista, Alinor Azevedo, um grande jornalista, que me disse “assina aí pra gente registrar o partido”. Eu assinei. Mas nunca fui por convicção. Se fosse, eu diria. Nunca liguei para nada. Assinei. Tá registrado? Então, seja feliz. No dia em que tiraram o partido de circulação invadiram a sede, no Rio, pegaram todas as fichas e eu fui chamado. Não eram chamados todos. Só as pessoas mais populares, os que têm comunicação com o povo: artistas, políticos, intelectuais, jornalistas. Esses eles prendem. São os primeiros. E eu fui. Chegou um camburão na porta de onde eu morava, só que eu não vi, morava em apartamento. E me disseram: “O senhor foi testemunha de um acidente de trânsito. Morreu uma pessoa e estão chamando o senhor para prestar depoimento. É só chegar lá e dizer que não viu nada”. Eu me vesti e saí tranqüilo. Na porta do prédio, ainda sem perceber nada, perguntei se iria no meu carro e disseram que não. Foram me empurrando, abriram a porta e me jogaram dentro do camburão. E eu não sabia porquê! Quando cheguei na Central, estavam prendendo todo mundo. Quando eu entrei... “Olha tá chegando gente famosa! Comuna famoso!” e “Pá!” Começaram a dar umas bolachas. Bom! Eu já apanhei muito por ser galã. Todo mundo queria bater. Então fui aprender a lutar para me defender. Sou faixa-preta em Jiu-Jitsu. Fui aluno do Hélio Gracie, fiz demonstrações com ele no Maracanãzinho. No segundo tapa, eu quase quebrei o braço do cara. Segurei, dei um balão nele... e aí que eu apanhei muito mais, me arrebentaram! Apanhei bastante! Mas foi porque reagi. Fiquei como comunista. Nunca tive uma participação ativa. Mas saí no mesmo dia. Liguei pro meu advogado, ele foi pra lá com pessoas importantes e me tiraram de lá.


O senhor tem ressentimentos em relação às críticas do pessoal do Cinema Novo?

Vou explicar como é que surge uma onda dessas. Eu posso dizer algo para um repórter, algo que não tenha a menor importância. Mas também posso dizer para outro que não simpatiza comigo, que está me entrevistando por obrigação, porque é a profissão dele. Então ele põe aquilo que eu falei e mais o que ele queria falar e não tinha coragem. E o troço vai aumentando. Então um botou: “Todo o Cinema Novo falava...” O “pessoal do Cinema Novo” não falava nada. Um falou um dia. Outro aumentou e assim foi. Muita gente do Cinema Novo se dava comigo. Uma vez saiu algo e até hoje, 30, 40 anos depois continua. Sabe por que é tudo uma onda? Porque quem inventou o Cinema Novo fui eu. Eu inventei o Cinema Novo. Como? Eu estava fazendo o meu primeiro filme, o Absolutamente certo, que foi saudado quando saiu. Ninguém esperava nada do “galã”. Toda a imprensa acha que galã é burro. E saiu que o Absolutamente certo era o cinema novo brasileiro. Ainda não existia o Cinema Novo. Depois veio O pagador de promessas. No livro do ano de Cannes tem sempre a justificativa do porquê eles deram a Palma de Ouro para aquele filme. E lá dizia que “esse filme, sem dúvida, marca um cinema novo do Brasil”. O pessoal do Cinema Novo já estava fazendo um filme. Eram cinco diretores que estavam fazendo o Cinco vezes favela. Tinha um guru da imprensa, o Alex Viany, guru dos jovens. Escritor, jornalista, foi diretor também. Então ele veio falar comigo: “Anselmo, tem uns garotos aí que eu estou lançando e que estão fazendo um filme que se chama Cinco vezes favela. E nós soubemos que seu filme foi selecionado para Cannes e o do Ruy Guerra para (o Festival de) Berlim. Nós queríamos assistir os dois filmes”. E daí passaram os filmes. Nessa sessão estava toda a rapaziada que viria a ser o Cinema Novo: Cacá Diegues, Leon Hirszman, Glauber Rocha – que já me conhecia de Salvador, de quando eu estava filmando O pagador de promessas –, Gustavo Borges, uns 10 ou 12 diretores do início do Cinema Novo. Quando terminou, aplausos e mais aplausos. E todo mundo falava: “Anselmo, você vai ganhar algum prêmio. É o melhor filme já feito no Brasil!” Todos falavam a mesma coisa. Mas, na verdade, eles nunca poderiam imaginar que eu ganharia a Palma de Ouro. Achavam impossível ganhar em Cannes.


Quando isso ficou claro?

Eu não voltei logo ao Brasil, porque quando você ganha a Palma de Ouro, é convidado para tudo quanto é festival, porque o de Cannes é o mais importante do mundo. E todo festival em que eu ia, ganhava. Voltei com cinco prêmios. Antes de chegar aqui, já percebi. De Cannes, fui para Paris. Lá, telefonaram para mim e disse: “Anselmo, sabe quem está aqui em Paris? Um grande amigo seu: o Glauber!” E eu: “Puxa! Fantástico! Então segura ele aí, vamos almoçar juntos”. Quando cheguei, achei ele meio triste, chateado. “Chateado quem está é todo aquele pessoal do Cinema Novo”, ele disse. “Mas como? Faz uns dez dias que saí de lá e estava toda aquela festa! Chateados? Mas por que?” E Glauber: “Anselmo, eles não admitem que você tenha ganhado do Buñuel”. Que imbecilidade! Eles não admitirem que eu tenha ganhado do Buñuel? Para mim, melhor do que o Buñuel tinha uns cinco lá. Quem gosta mesmo do Buñuel é comunista, porque ele fala mal dos Estados Unidos, fala mal do capitão, fala mal do patrão. Ele é um diretor comunista. Os filmes dele são primários. Eu tenho coragem de falar e provo. Mas comunista acha ele um deus. (...) O filme do Buñuel era um que tem um monte de gente dentro de uma casa de portas abertas e que não consegue sair (O anjo exterminador). Uma fita chata, imbecil, própria do Buñuel. Ele quer dizer que é uma sociedade milionária que não sabe qual é a saída. Vá à merda! Vai sofrer assim nos quintos dos infernos! Cinema não foi feito pra isso...


E Hollywood?

Eu estive em Hollywood. Fui levado pelo presidente e o vice-presidente da Universal. Eu tinha ganhado cinco festivais internacionais e os americanos pegam diretores assim e levam para lá. Iam fazer isso comigo. Não que eu não quisesse. Quer fazer, faça. Iam pagar em dólar. Mas é que eu briguei antes do tempo, antes de receber o primeiro salário. O presidente e o vice-presidente da Universal me colocaram numa limusine que parecia um ônibus e fui conhecer os estúdios da Universal. Chegando lá, eu vi aquele portão largo, de ferro, muito alto, trabalhado, escrito Universal Pictures em cima. Quando eu estava entrando, olhei para o porteiro, fardado, de quepe, um coitado de um velho, que abriu a porta. Eu passei rente a ele e levei um susto quando vi a cara dele. Gritei: “Stop! Stop the car! Stop!” O carro parou, eu abri a porta e saltei. Cheguei pro porteiro e falei: “Bernoudy, como vai você?” Ele foi meu diretor na Atlântida! O Luís Severiano Ribeiro, grande exibidor do Rio, quando comprou a Atlântida, contratou o Bernoudy, que era produtor em Hollywood, para vir melhorar a Atlântida. Ele veio pro Rio, trabalhou, organizou a Atlântida. Dirigiu meu primeiro filme lá, Terra violenta. Ed (Edmond) Bernoudy adorava o Brasil, adorava o Rio. Ficou dois anos no Rio, já falava português. Foi assistente do John Ford. Era um bom diretor. Eu conversava muito com ele, aprendi muito com ele. E aí eu o vejo de farda e de quepe na porta da Universal. Eu saltei e perguntei: “Mas o que é que você está fazendo com essa farda aqui?” Meu professor, meu diretor, mas que coisa! A essa altura ele já estava com uns 80 anos. Eu tirei o quepe dele, joguei fora e falei: “Você não vai ser porteiro aqui, não! Mas que país é esse? Você foi diretor e lhe jogam aqui?! Deviam lhe aposentar pelo menos! Vamos embora!” Fiquei chateado. Daí eu cheguei no carro e falei para o tradutor: “Fala que esse homem não vai mais trabalhar aqui na portaria. Que ele vai ser o meu primeiro assistente. E ele vai no carro conosco”. O presidente da Universal virava a cara para ele. Quando eu saí de lá, falaram que ficava para depois o acerto do meu contrato. E sabe o que eles alegaram? “Mas como?! Nós estamos contratando um gênio” – porque, para eles, ganhar aqueles prêmios todos era ser gênio – “estamos contratando um gênio para melhorar nosso estúdio e ele foi aluno do nosso porteiro?!!” Acabou. Não me contrataram. A minha carreira foi a mais curta de um diretor em Hollywood.


O senhor tem acompanhado as nossas produções atuais?

Eu tenho visto bons filmes brasileiros. Mas o cinema brasileiro passou a ser dirigido por pessoas que têm títulos e são muito jovens. O que é ter título? É o cara que vai para a faculdade cursar Comunicação e depois faz uma especialização chamada Cinema. E geralmente é gente que tem posses. Então ele termina e mostra o diploma para os pais. E aí, porque tem um diploma, ele vai dirigir. O pai, que tem bons relacionamentos, arruma financiamentos e tal. Geralmente ele faz um filme. E não faz nunca mais nenhum. Porque não sabe dirigir. (...) A imprensa não quer saber se ele está dirigindo, se demorou, se foi o pai dele quem pagou, se até aquela data ele não ganhou nenhum centavo... pega e esculhamba: é burro, não sabe dirigir. A maior parte não faz o segundo filme.


O senhor gostou de alguma produção brasileira recente?

Central do Brasil.


Dirigido pelo Walter Salles, filho de banqueiro...

Eu acho que, no momento, ele é o melhor diretor brasileiro. Eu já vi um outro filme dele que também gostei. E já fui assistir porque era dele. Não o conheço pessoalmente. Tenho um olho clínico bom. Eu estou correndo perigo de não ser mais o único Palme D’Or do Brasil.

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